Intervenção do Ministro dos Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas,
Embaixador António Monteiro, na Conferência do Instituto Português de Relações
Internacionais e da Fundação Luso-Americana, hoje.
Arquive-se.
“Os Estados Unidos e a Ordem Internacional”
I – O Impacto do 11 de Setembro
É um lugar comum, mas foi isso mesmo que aconteceu – o dia 11 de Setembro mudou o mundo. Há momentos que marcam a História e aquela manhã foi um deles. Todos nós nos lembramos onde é que estávamos naquele dia.
Podemos até não nos lembrar do que fizemos imediatamente antes ou a seguir, mas todos temos ainda na memória aquelas imagens de destruição e o choque que então sentimos. Para quem, como eu, tem laços especiais de afinidade a Nova Iorque, 11 de Setembro foi um dia muito, muito triste.
Washington apareceu então como que humilhada, com o Pentágono a exibir a ferida aberta pela parte que lhe tocou da agressão. Ninguém previra a tragédia. Mas permanece também na nossa memória a resposta heróica da cidade e de toda a nação norte-americana à traição do terrorismo e a solidariedade internacional que se afirmou de imediato.
Com estes atentados desapareceu o sentimento americano de invulnerabilidade, alimentado desde a guerra da independência. O “dia infame” do ataque a Pearl Harbour era a única referência comparável para o povo norte-americano. A mesma inspiração patriótica moldou a reacção em 2001, e nunca tive dúvidas de que o impacto psicológico do 11 de Setembro na população dos Estados Unidos teria consequências duradouras.
Os atentados mudaram também a percepção do próprio terrorismo, com a ficção a tornar-se realidade. Globalmente ninguém estava preparado para o grau de destruição atingido e para o recurso aos meios utilizados.
Tomou-se consciência da nova dimensão do terror que ameaça as nossas sociedades e que Kofi Annan definiu como “o inimigo comum”. Já não eram apenas os “Estados-párias” e a proliferação nuclear a figurar no rol de ameaças transcontinentais. Outros actores entraram em cena
Estas duas mudanças explicam uma terceira: o fim da tentação isolacionista em Washington. Identificada a ameaça comum ao mundo civilizado, coube aos próprios Estados Unidos, superpotência directamente atingida, definir e comandar a reacção.
O Presidente Bush, então no início do mandato, declarou guerra sem tréguas ao terrorismo, apelou a uma coligação internacional tão vasta quanto possível e o mundo civilizado ofereceu-lhe todo o apoio - a Aliança Atlântica, por exemplo, invocou pela primeira vez o artigo 5º do Tratado.
A inclusão de países árabes nesta coligação foi especialmente importante para afastar o espectro do “choque de civilizações”, categoricamente rejeitado pela Administração norte-americana. Também regiões até então relativamente marginalizadas, como a Ásia Central, ganharam uma nova relevância estratégica.
Porque as vitória militares são necessárias mas não suficientes, paralelamente à campanha militar contra o terrorismo, proliferaram iniciativas, de âmbito bilateral e multilateral, instrumentais neste combate, como a criação de instrumentos jurídicos para eliminar as fontes de financiamento dos grupos terroristas, a celebração de acordos de cooperação judicial e o desenvolvimento de uma maior cooperação policial internacional.
Realço a mudança na questão financeira. Da minha experiência nas Nações Unidas, lembro-me de discussões frequentes e de repetidas afirmações quanto à impossibilidade de “perseguir” as fontes de financiamento de actividades ilícitas. Tratar-se-ia de uma tarefa perigosa até, que poria em risco o sistema económico internacional e as regras do mercado tão caras aos países desenvolvidos.
Fez-se mais nas duas semanas seguintes aos atentados do que nos anos precedentes. Juntaram-se, finalmente, a vontade política e a concertação internacional necessárias para combater os financiamentos de actividades criminosas ou ilegais, incluindo, em primeiro lugar, o terrorismo.
Neste combate houve logo vozes que chamaram a atenção para dois aspectos: o primeiro respeitante à necessidade de salvaguardar os direitos e as liberdades dos cidadãos. Como disse Kofi Annan, “se tivermos de errar, devemos fazê-lo a favor da liberdade”, respondendo à questão de saber qual o grau de liberdades e direitos que poderão ser sacrificados a favor de uma melhor segurança.
O segundo, tem a ver com eventuais atitudes de arrogância e de recusa de ouvir a voz dos outros, sobretudo daqueles a quem pretendemos ajudar. Uma tal atitude será sempre, em qualquer circunstância, contraproducente.
II – As Relações Transatlânticas
A Europa apoiou Washington de forma unânime e espontânea. Não foi apenas a reacção emocional a uma agressão cobarde contra um aliado, mas uma resposta racional contra um inimigo que bem conhece: o terrorismo.
O grau de urgência sentido por cada um dos Estados-membros da União Europeia foi diferente consoante as diversas experiências nacionais. Nenhum país podia ou pode virar a cara ao combate contra o terrorismo que está à nossa porta e pode entrar pela nossa casa a qualquer momento. Isso mesmo nos foi lembrado - como se fosse necessário - pelo trágico atentado de 11 de Março, aqui ao lado, em Madrid.
Com o processo que conduziu ao derrube de Saddam Hussein e à consequente alteração política em curso no Iraque, é notório que se registaram tensões entre os dois lados do Atlântico, originando fissuras com consequências importantes até ao nível das opiniões públicas.
Hoje, no entanto, creio que os Governos envolvidos nesse debate olham sobretudo para o futuro. A prioridade política quanto ao Iraque é apoiar o processo de estabilização e democratização, no quadro de um mandato aprovado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas e pelo Governo transitório iraquiano. Nesta tarefa, a Europa e os Estados Unidos estão lado a lado, mesmo se, por vezes, com ópticas diferentes.
A Comunidade Internacional, empenhada em garantir ao povo iraquiano a viabilidade da paz e do desenvolvimento, tem de permanecer firme nos princípios e nas convicções.
Como afirmou há poucos dias o Senhor Primeiro-Ministro perante a Assembleia-Geral das Nações Unidas, “não podemos alterar o passado, mas devemos assumir que poderemos ainda influenciar positivamente o futuro. Para tanto teremos de saber encontrar rapidamente a nossa unidade”.
É, contudo, óbvio que a polémica iraquiana fez questionar a parceria atlântica. O tema nem sequer é novo, ressurgindo ciclicamente. Nova foi, talvez, a veemência das discussões. Com que resultado?
Um estudo de um grupo eminente liderado por Henry Kissinger, Lawrence Summers e Charles Kupchan, patrocinado pelo “Council on Foreign Relations” constitui uma resposta sensata a essa questão.
Nele se conclui que, e cito, “apesar dos desafios serem diferentes, os benefícios da parceria transatlântica continuam a ser substanciais, tal como os custos, quando se permite que essa parceria se desgaste. As recentes tensões demonstram não apenas as dificuldades que se erguem quando a América e a Europa são incapazes de agir como parceiros, mas também que os problemas mais prementes são melhor abordados em conjunto. A Europa e a América têm muito mais a ganhar como aliados do que como neutrais ou adversários.”
Robert Kagan teve o seu momento de glória quando contrapôs a força à docilidade, escrevendo que “os americanos são de Marte e os Europeus são de Vénus”. Creio que ambos somos da Terra e ainda não estamos em condições de habitar planetas diferentes. Quanto muito podemos pragmaticamente aspirar a ir, isolados ou conjuntamente, a umas estações orbitais…
Em boa verdade, a riqueza, quer da Europa, quer dos Estados Unidos, assenta na diversidade que cada um contém. Mas, de um lado e do outro do Atlântico, defendemos os mesmos princípios de paz, de liberdade e de democracia; temos em comum valores civilizacionais; e partilhamos uma vastidão de interesses mútuos. Esta constatação faz com que aquilo que nos une seja, sem dúvida, mais forte do que o que, eventualmente, nos possa separar.
É neste contexto do relacionamento transatlântico que se coloca a questão crucial da orientação estratégica das capacidades europeias de defesa e da sua articulação com a Aliança Atlântica. A resposta do Governo português numa palavra é: complementaridade.
Entendemos que o aprofundamento da dimensão europeia de segurança e defesa deverá ser prosseguido em estrita complementaridade entre a UE e a NATO, que continua a ser tão relevante como foi no passado para a segurança euro-atlântica. Defendemos, por isso, o reforço da parceria estratégica e da articulação de esforços entre as duas instituições, de forma a evitarmos duplicações desnecessárias.
Portugal é um país de centralidade atlântica, simultaneamente europeu e atlântico. Como tal, é dos que mais tem a ganhar com a complementaridade entre a União Europeia e a NATO, e mais a perder com uma visão concorrencial. Esta é uma questão política mas também de recursos, que são escassos.
Aliás, no que se refere a recursos, não devemos alimentar ilusões. A partilha de responsabilidades na arquitectura de segurança transatlântica e europeia, assente no aumento das capacidades europeias, exige um esforço suplementar dos europeus. Esta realidade é incontornável num sector em que o aspecto tecnológico é cada vez mais decisivo.
Para responder afirmativamente ao pedido de partilha de custos e responsabilidades do aliado transatlântico e realizar o seu objectivo de crescente afirmação e influência diplomática, a Europa deve desenvolver meios para uma autonomia militar complementar mas, também, mais ampla relativamente aos Estados Unidos. Mesmo entre irmãos, é salutar haver duas cabeças pensantes.
III – As Relações entre Portugal e os Estados Unidos
Esta posição nacional tem raízes antigas e sólidas. Portugal foi um dos primeiros países a reconhecer a independência dos Estados Unidos. Não serei original ao recordar aqui que o Abade Correia da Serra, nosso primeiro representante diplomático naquele país, poderá não ter conhecido Alexander Hamilton com a profundidade com que o Professor John Harper o conhece, mas era amigo próximo de Thomas Jefferson e uma visita frequente na sua casa de Monticello.
A presença marcante da comunidade de origem portuguesa no território norte-americano, de New Bedford ao Hawai é, desde logo, a face mais visível da forte ligação entre as nossas duas nações.
O Acordo de Cooperação e Defesa constitui actualmente o quadro institucional do relacionamento bilateral entre Portugal e os Estados Unidos. Para além de definir as condições de utilização da Base das Lages, cuja relevância geoestratégica é sobejamente conhecida, o acordo define amplos objectivos de cooperação, que envolvem as áreas política, militar, económica, comercial, científica e cultural, bem como a cooperação específica com os Açores.
O historial secular de cooperação dá-nos garantias quanto à sua continuidade mas também nos traz responsabilidades acrescidas, devendo perspectivar-se, sobretudo, nos vastos interesses comuns que se projectam no futuro, quer no campo político, quer na esfera económica.
Portugal tem permanecido firme ao lado do seu aliado norte-americano, adoptando uma postura moderadora e conciliadora nos momentos mais difíceis. No quadro multilateral, cooperamos activamente com Washington na NATO, no diálogo União Europeia – Estados Unidos
(é, precisamente hoje, lançada uma iniciativa da Comissão Europeia com o objectivo de, através de uma discussão o mais abrangente possível, promover uma maior integração transatlântica, inovação, criação de emprego e competitividade dos dois lados do Atlântico), na OSCE, ou ainda na PSI (Proliferation Security Initiative) e na Comunidade das Democracias.
Simultaneamente, temos procurado sempre que as Nações Unidas desempenhem o lugar central que lhes cabe por direito próprio nas grandes questões internacionais.
Acredito que num mundo interdependente, em que crescem ameaças com potenciais repercussões globais – desde o terrorismo à proliferação nuclear, passando pelas alterações climatéricas – a resposta reside na via multilateral. E julgo inútil insistir na esterilidade do contraponto maniqueísta entre as visões de um mundo multipolar ou unipolar.
Permitam-me concluir reiterando o valor da aliança entre todos os que se revêem nos objectivos que levaram à adopção da Carta das Nações Unidas.
Tal como o nazismo no século passado, o terrorismo é hoje a grande ameaça. Em 39, quando o mundo livre estava em perigo, a voz da razão e da coragem de Churchill preparou os nossos pais e avós para o “sangue, suor e lágrimas” necessários à decisão de “nunca desistir”. Também agora não podemos ceder.
Reflectindo a nossa memória colectiva como povo navegador, Pessoa escreveu: “Deus ao mar o perigo e o abismo deu mas nele espelhou o céu”. Mantenhamos a confiança no mar, elemento fundador e sempre renovador da Comunidade Transatlântica.
António Monteiro