30 de setembro de 2004

Documento. António Monteiro fala da Concordata (revista)

Mais um documento, hoje em Notas Formais: a intervenção do MNECP António
Monteiro
, no Parlamento, sobre a Concordata (revista). Texto longo, mas vai na
íntegra em Diplomacia a oração deve ser completa. Há nuances.

Arquive-se.


Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Permitam-me uma saudação especial a todos os Senhores Deputados, na ocasião em que me dirijo pela primeira vez a esta ilustre Assembleia na qualidade de Ministro dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas. Quero aqui afirmar a minha inteira e total disponibilidade, e do Ministério que dirijo, para colaborar com a Assembleia da República sempre que esta assim o entenda. Senhor Presidente,

Senhores Deputados,

Sem prejuízo da laicidade do Estado Português, consagrada no princípio constitucional da separação do Estado e das Igrejas e comunidades religiosas, é inquestionável o papel singular exercido pela Igreja Católica ao longo da história do nosso país. Este caminho conjunto remonta à Bula Manifestis Probatum, pela qual o Papa Alexandre III reconheceu em 1179 a independência de Portugal e o título de Rei a D. Afonso Henriques.

Este relacionamento, nem sempre fácil em virtude de vicissitudes históricas e da relativa indefinição dos poderes temporais da Igreja Católica, foi pacificado pela Concordata de 7 de Maio de 1940, negociada no Pontificado de Pio XII, durante o anterior regime português. Nas últimas décadas, a desactualização daquele texto de direito internacional tornou-se evidente, face às mudanças entretanto ocorridas na sociedade portuguesa e na própria Igreja Católica, de que se destacam as geradas pelo 25 de Abril de 1974 e pelo Concílio Vaticano II. Até à data, essas alterações apenas tinham conduzido a uma modificação, datada de 1975, relativa à admissibilidade do divórcio no casamento católico.

A preparação da Lei da Liberdade Religiosa (aprovada em 2001) acentuou o desajustamento da Concordata de 1940, com algumas disposições tornadas inconstitucionais, de constitucionalidade duvidosa, caducas ou simplesmente anacrónicas. Não surpreende, por isso, a decisão desta Assembleia a pronunciar-se em 2000 pela necessidade de realizar o processo de revisão da Concordata de 1940, nos termos decorrentes da Constituição e do direito internacional; decisão essa que correspondeu igualmente ao apelo no mesmo sentido e quase simultâneo expresso pela Conferência Episcopal Portuguesa.

O estudo aprofundado sobre as alterações a introduzir no texto então em vigor levou, porém, a concluir pela necessidade de celebração de uma nova Concordata. Iniciou-se, assim, o processo que agora se concluirá, pela aprovação na ordem jurídica interna do texto assinado pelo Senhor Primeiro-Ministro Durão Barroso e pelo Cardeal Sodano em 18 de Maio do corrente ano.
A negociação da nova Concordata, tal como a que conduziu à Concordata de 1940, foi morosa, conforme é típico de um processo com implicações tão vastas e importantes num relacionamento multissecular, que se deseja profícuo e pacífico. Foi também uma negociação pautada por uma grande vontade de cooperação construtiva e por um espírito amigável e de respeito mútuo entre o Estado Português e a Igreja Católica.

Para tal, contribuiu de forma absolutamente determinante o inexcedível trabalho desenvolvido pelo Professor Doutor António de Sousa Franco, na qualidade de jurista da Comissão Negociadora da Santa Sé, que sempre qualificou como muito gratificante esta experiência. As exemplares capacidades intelectuais, a inquestionável rectidão moral e o elevado sentido de Estado do Senhor Deputado Sousa Franco merecem a sentida palavra de homenagem que, em nome do Governo Português, presto nesta sede em sua memória.

Todos os membros de ambas as comissões negociadoras assumiram sempre o princípio da cooperação como basilar na condução deste processo; compreendendo que, sem prejuízo das diferenças de método ou de teleologia, a Igreja e o Estado visam servir o Homem. Entenderam igualmente que a Concordata para o século XXI deveria criar quadros de cooperação institucional que permitissem manter os princípios da separação, da laicidade e do pluralismo. Deveria ainda consagrar o princípio constitucional da Liberdade Religiosa no que se refere à Igreja Católica e às suas instituições.

O documento que o Governo vem hoje apresentar a esta ilustre Assembleia reflecte precisamente esse conteúdo, conforme tinha sido, desde logo, determinado no mandato do XIV Governo Constitucional. Uma palavra de apreço merecem todos os intervenientes nesta negociação, que agiram sob orientação dos meus antecessores: Ministros Jaime Gama, António Martins da Cruz, e Teresa Gouveia. Gostaria, particularmente, de saudar o trabalho desenvolvido pelo Embaixador Pedro Ribeiro de Menezes que, enquanto Embaixador de Portugal junto do Vaticano, acompanhou todo este processo. Os negociadores portugueses empenharam-se na preservação de todos os pontos considerados essenciais, sobretudo de uma perspectiva constitucional, que se encontram consagrados neste instrumento jurídico internacional que passo agora a expor mais detalhadamente.

O novo texto não se afasta muito do anterior em termos de estrutura, desde logo porque as matérias abrangidas correspondem, no essencial, às mesmas que tradicionalmente são objecto das relações entre qualquer Estado e a Igreja Católica. Já em sede de nomenclatura e de técnica legislativa, existiu a preocupação de modernizar o texto e de o adequar aos grandes princípios constitucionais vigentes actualmente em Portugal, sobretudo o da laicidade do Estado e o da igualdade das religiões e dos cultos. Muitas das alterações pretendem igualmente melhorar a articulação do direito estatal com o direito canónico.

Assim, surgem como inovações mais evidentes na Concordata de 2004:

  • A instituição de um regime fiscal não discriminatório em relação a outras confissões religiosas, incluindo a inexistência de isenções em sede de IRS: este é um dos exemplos mais evidentes de que a Concordata não cria nenhum privilégio, nenhuma excepção, nenhum tratamento de favor em relação ao regime constante da Lei de Liberdade Religiosa para todas as religiões e cultos;
  • A subordinação do ensino da moral e da religião católicas ao sistema educativo português, se bem que com a participação da Igreja: estas disciplinas integram-se no sistema escolar e são livres, resultando da opção quer dos estudantes, quer das suas famílias;
  • A possibilidade de as escolas superiores católicas poderem conferir graus, sem discriminação em relação às suas congéneres e incluindo a Universidade Católica, mas nos termos do direito nacional;
  • A não obrigatoriedade da manutenção de assistência religiosa nas Forças Armadas integrada na carreira militar;
  • A eliminação da intervenção do Estado na nomeação dos Bispos;
  • O reconhecimento da personalidade jurídica interna da Conferência Episcopal Portuguesa;
  • A previsão de um mecanismo de cooperação entre o Estado e a Santa Sé no âmbito internacional, com realce para o espaço dos Países de Língua Oficial Portuguesa, sem referências ao Acordo Missionário, cuja caducidade se pressupõe;
  • A previsão de duas Comissões Paritárias, enquanto órgãos de concertação permanente, encarregadas de zelar pela correcta aplicação da nova Concordata: uma geral para proceder à sua interpretação, dirimindo as dúvidas que venham a surgir da respectiva aplicação; e outra especificamente para as questões do património, com vista a consistir num fórum de cooperação relativa aos bens da Igreja que integram o Património Cultural Português;
  • A necessidade de as pessoas jurídicas canónicas se inscreverem num registo próprio do Estado, caso desejem intervir no comércio jurídico civil, e a equiparação da capacidade jurídica civil dessas pessoas à de outras com fins análogos;

  • A produção de efeitos civis das sentenças eclesiásticas da anulação do casamento apenas após a confirmação e revisão de sentença estrangeira nos tribunais portugueses e de acordo com as regras processuais nacionais.

    O texto que tenho a honra de agora submeter à apreciação e aprovação de Vossas Excelências, Senhores Deputados, apresenta a solidez e o consenso necessários à longevidade típica da sua natureza e, traduzindo o pluralismo próprio da democracia portuguesa, faculta aos cidadãos que se revêem na religião católica a liberdade a que têm direito. Fornece, também, à Igreja Católica a base suficiente e necessária à sua acção e ao seu papel na sociedade portuguesa contemporânea.

    (...)

    Intervenção final, após perguntas e respostas:

    Sem quebrar com a sua tradição histórico-cultural, o Estado Português enceta agora uma nova fase de relacionamento com a Igreja Católica. A palavra chave para esta nova etapa é «cooperação».
  • A «Concordata da Democracia», reiterando para a Igreja Católica os princípios constantes da Lei de Liberdade Religiosa, representa um marco histórico, de relevante significado para os cidadãos portugueses de formação católica. Sem prejuízo da igualdade jurídico-constitucional das religiões e cultos praticados em Portugal, mantém-se uma tradição apostólica que teve uma influência determinante na formação da Nação Portuguesa, bem como no quadro de valores actualmente predominante na sua sociedade.

    Convicto da utilidade do debate aqui havido, apelo agora, Senhores Deputados, à aprovação da proposta de resolução apresentada pelo Governo que, conforme tive oportunidade de referir, traduz inequivocamente o pluralismo e a laicidade do Estado Português, observando de forma séria e irrefutável os princípios jurídico-constitucionais do Estado de Direito.

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