27 de setembro de 2004

Carta do Canadá. De Fernanda Leitão

Transmite-se na íntegra a «Carta do Canadá» enviada por Fernanda Leitão.

Arquive-se.

CARTA DO CANADÁ
Fernanda Leitão


Toronto não é Bissau

No dia 22 de Setembro os empregados do consulado de Portugal em Toronto eram convidados pelo titular da missão, Artur Monteiro de Magalhães, para um almoço, oferecido por ele, dentro das instalações consulares. O cônsul, em pessoa, instava os funcionários a não faltarem por ter, dizia, uma importante comunicação a fazer. Grande expectativa. Nessa noite, alguns deles especulavam que aquilo devia ser “transferência para tacho na União Europeia”. Não achei disparatada a sugestão porque, tendo Portugal batido no fundo com este governo, tudo pode acontecer.

O dia 23 trouxe aos funcionários consulares um lauto almoço, regado a champagne alemão, e uma desilusão de todo o tamanho. O cônsul comunicou que partiria para Portugal dali a dois dias para não mais voltar ao Canadá, destituído do cargo pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. Não sabia porquê, mas calculava que fosse por, na noite de 21 de Agosto, depois de um jantar fora de portas, ter sido obrigado a parar o carro na autoestrada para passar pelo sono, tendo sido acordado por dois agentes da OPP (Ontario Provincial Police, um ramo da Polícia Montada), que o queriam pôr a soprar o balão e verificar-lhe os documentos. Recusou uma coisa e outra, afirmou, porque um diplomata é um diplomata, e aqui infere-se que é um ser acima da lei e das regras. E vai daí, contou, aqueles brutos botaram-lhe algemas e deram-lhe voz de prisão, estando ele inocente como um bébé de mama. Até, por sinal, lhe tinham ferido os pulsos porque ele, macho lusitano, resistiu. Neste passo ergueu-se uma funcionária consular, Arlete Antunes, casada com o correspondente local da Lusa, em brados de revolta incontida, contando que era verdade, o senhor cônsul só a ela tinha mostrado os arranhões e contado a história. Toda a sala se dobrou perante a imponência da Confidente e lhe admirou ter sabido guardar intacto aquele segredo para o marido transformar em “caxa” quando lhe conviesse. Mas Artur de Magalhães, tomado de uma verve incontrolável, adiantou mais pormenores. Depois das algemas e da voz de prisão tinha chegado uma oficial da polícia chamada pelos dois agentes. Diz que uma mulher e tanto, a avaliar pelo ar meio assustado com que Magalhães referiu que se ela lhe tivesse dado uma “barrigada” ele não aguentaria o golpe. Portanto, um pedação de mulher mas, pelo que se verá de seguida, cortês e calma. Nada burra e bem treinada, adiantarei ainda. Por certo com medo da “barrigada”, Magalhães entrou pela vida da negociação: pediu à oficial da OPP que retirasse o mandato de prisão e as algemas e, em troca, ele faria o teste de alcoolémia e mostraria todos os documentos. A mulherona, cordata e delicada, aceitou. Magalhães soprou no balão, a oficial leu os papéis e tomou todas as notas que entendeu, após o que mandou tirar as algemas e disse ao cônsul-geral de Portugal para o Ontário e Manitoba que podia seguir caminho. O diplomata mostrou os arranhões à Confidente e considerou o caso arrumado. Poucos dias antes do almoço oferecido no consulado, recebeu ordem de destituição e de marcha do MNE. Pensou logo em traição do embaixador de Portugal em Otava, Silveira de Carvalho. E, perante os funcionários consulares reunidos na Última Ceia, despejou o saco acerca do embaixador, contou histórias medonhas desde o tempo da Guiné-Bissau, chamou-lhe tudo menos santo. E de caminho, destratou o MNE, aquela corja de maus colegas e piores chefes. A Confidente passou ao ataque, corroborando o que Magalhães dizia. Levantaram-se algumas vozes sugerindo que o Sindicato dos Empregados Consulares se empenhasse na defesa do cônsul. Mas a delegada sindical, Clara Santos, opinou que se devia era mobilizar a comunidade para esta cruzada. A Confidente aplaudiu, secundada por umas quantas e quantos que se regem pela cartilha profissional do “quanto pior é o cônsul, melhor é para mim que posso meter férias umas poucas de vezes por ano, vou a Lisboa quando quero, gasto tempo a jogar no computador em vez de despachar os documentos que aqueles tugas lá foram esperam e pagam, e me passa cartas de recomendação para abichar viagens, cursos e publicações de livros oferecidas pelo governo dos Açores”. Grande cartilha. Abençoada cartilha que tão bons frutos tem dado aos que a usam. Mas, nessa mesma noite, uns quantos funcionários consulares faziam saber que não se deixavam enrolar, que não se vendiam por almoços nem por champagne. Como sei o que a Lusa gasta e o que gasta o correspondente local, nessa mesma noite mandei a notícia para Portugal e para a diáspora. Just in case.

Na manhã de 24 o semanário Sol Português publicou uma prosa anónima, mas que toda a gente percebeu ser de Fernando Cruz Gomes, intitulada MNE “HOSTILIZA” COMUNIDADE PORTUGUESA. Na tarde desse mesmo dia, o serviço português da estação canadiana OMNI NEWS transmtiu uma peça sobre o assunto. Foi relatado, sem meias palavras, o que afirmou o porta-voz da OPP: convidado a mostrar os documentos, Artur de Magalhães, não só recusou como agrediu os agentes da autoridade. Seguiu-se o que é inevitável nestes casos: algemas e voz de prisão. E chamar a oficial de serviço à zona. Depois da negociação acima descrita, a oficial e os agentes apresentaram o caso ao Ministério dos Negócios Estrangeiros do Canadá, conforme relatou a OMNI NEWS, e este declarou, peremptoriamente, que aquele era um incidente em que não havia imunidade de qualquer espécie. A OPP foi à vida e a ocorrência foi notificada ao embaixador de Portugal que, como era seu dever, comunicou ao Palácio das Necessidades.

Pelos vistos, Magalhães contava ser encoberto, isto é, que o embaixador não cumprisse o que lhe incumbia. Mas como, santo Deus, se Toronto não é Bissau? É que Bissau é outra largueza para a asneira, como é próprio de países do Terceiro Mundo. Lá, por exemplo, pode um funcionário superior mandar botar luz vermelha na porta do gabinete e transformá-lo em alegre Bataclan, com mulatas e tudo. Ou falhar a entrega do carregamento de medicamentos e alimentos para populações carenciadas, por andar na borga, e depois de desaparecida a mercadoria, estando o patrão fora, dar à sola e andar fugido como um vulgar bardina. Ou estampar um carro CD na Recta do Cabo, com uma alegre companhia lá dentro, e vir-se apurar que era fruto duma contabilidade paralela. Nesses países a liberdade é isto, para os que comem, porque as populações de barriga vazia nem se podem queixar. Em Toronto, e no Canadá todo, é diferente. Ninguém está acima da lei e qualquer um que ponha o pé em ramo verde, mesmo que seja ministro ou diplomata, leva algemas e pode ir parar à prisão. O país alberga emigrantes de 160 países, a quem dá a liberdade de manter a sua língua e tradições, a quem dá até o direito a voto depois de obtida a cidadania, mas não tolera abusos, rebalderias e violências gratuitas. Definitivamente, Toronto não é Bissau – como gostariam alguns desperdícios do império que se arrastam pelos ghettos do atraso.

No dia 25 de Setembro, foi posta a circular uma carta dirigida ao actual primeiro ministro português em que se defende Magalhães e se pretende enterrar o embaixador. Passo os olhos pelas assinaturas e verifico que, além dum imbecil de nascença, dum cadastrado que defraudou o estado canadiano em mais de meio milhão de dólares e de alguns caloteiros profissionais, há o correspondente da Lusa e mais uns quantos fabricantes de panelas sobejamente conhecidos. É um documento notável e exemplar. Ao que oiço este luzido grupo anda por aí a angariar parceiros para irem a Lisboa fazer um protesto. Benza-os Deus.

Dou comigo a sentir-me muito feliz, e também orgulhosa, de ser marginal. De viver à margem de toda esta podridão que desprezo. Mas podridão que dói, porque é por causa deste establishment que a comunidade não tem o avanço social e a visibilidade que os seus 50 anos e muito trabalho honrado da grande maioria dos portugueses aqui radicados amplamente pede.

Resta rematar com uma constatação: na comunidade portuguesa do Ontário eram muitos os que esperavam uma saída destas, embora não a esperassem tão cedo. Querido do establishment que tomou de assalto alguns clubes, associações e jornais, Artur Monteiro de Magalhães foi um cônsul que, um mês depois de estar em Toronto, já tinha mostrado o que é – arrogante, pedante, linguareiro, gabarola e incompetente. Deixa o consulado numa anarquia. E muita gente, e muito boa gente, contra ele. Desde o princípio se percebeu que não tem linha. O que se passou agora e a sua reacção, só o confirma.

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