4 de abril de 2006

Política externa "comum" e não "una". Precisão de Fernando Neves

Transmite-se cópia da intervenção do Secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Embaixador Fernando d´Oliveira Neves, no “Fórum de Debate do Futuro da Europa”, na Assembleia da República (31 de Março de 2006).

Arquive-se.

A Europa segundo Fernando Neves

Intervenção do Secretário de Estado dos Assuntos Europeus,
Embaixador Fernando d´Oliveira Neves,
no “Fórum de Debate do Futuro da Europa” (31 de Março de 2006, na AR)


Falar da Europa é, antes de mais, falar dos valores que moldam a civilização europeia, do desígnio de viver em paz, segurança e liberdade numa sociedade justa, estável e próspera. Mas é sobretudo falar da vida dos cidadãos europeus, do seu quotidiano, dos seus problemas, do emprego, da educação, da saúde, do bem-estar, da solidariedade social. Como já o havia dito Jean Monnet, em relação ao projecto europeu “não congregamos Estados, unimos pessoas”. Num momento em que a Europa atravessa um período de estagnação económica, em que pairam dúvidas e ambiguidades sobre o seu sistema social, o que preocupa os cidadãos europeus é, justamente, a sustentabilidade do modelo económico e o desemprego. A “crise da Europa” que tanto se comenta será, antes de tudo, uma crise de expectativas na União Europeia. Compreensivelmente, a União acaba por ser muitas vezes apontada como “bode expiatório” desta situação.

Mas não se poderá compreender um debate sobre a situação da Europa e o seu futuro se não tivermos presente a perspectiva histórica em que a União Europeia se edificou e se continua a desenvolver.

O processo de integração europeia emergiu da maior catástrofe da História da Europa e representou uma resposta visionária e ambiciosa para a etapa mais cruel e violenta da longa sucessão de guerras do nosso continente, ocorrido na primeira metade do século passado. Algumas das páginas mais tirânicas e sanguinárias da História da Humanidade tiveram lugar na Europa. Ignorar esses factos é não ter consciência do significado da paz, da segurança e da solidariedade que o projecto europeu permitiu consolidar.

Na verdade, não podemos discutir a Europa ignorando que, num passado ainda recente, se viveu o culminar daquilo que vem sendo qualificado como a “guerra civil europeia”. Temos uma inegável tendência para dar por garantida a estabilidade, o bem-estar e o emprego, ou seja, tudo o que conhecemos desde a segunda metade do século XX, esquecendo porém que esses cinquenta anos foram, sem paralelo, o mais longo período de paz e prosperidade que a Europa ocidental conheceu. É algo que todos sabemos, mas é também algo que se esbate na agitação do quotidiano. Meio século de liberdade e democracia não são, seja qual for o critério, conquistas de somenos importância. A remoção de tantas barreiras - económicas, políticas, culturais e, até, psicológicas - e a construção de um edifício tão sólido não eram dados adquiridos à partida.

O projecto de integração europeia conseguiu unir, numa causa comum, povos que antes se enfrentaram entre si. A chave do processo de integração comunitário residiu em sobrepor ao interesse nacional imediato o interesse comum objectivo dos Estados-membros na gestão conjunta da interdependência das economias europeias. Este foi o cimento fundador do processo de integração, que o tornou atraente, e que inscreveu o interesse colectivo europeu nos interesses nacionais.

Os 25 Estados que actualmente compõem a União Europeia respeitam os valores da Liberdade, da Democracia, dos Direitos Humanos. A União continua a ser um pólo de atracção para povos vizinhos que aspiram à constituição de sociedades estáveis, seguras e prósperas.

A União Europeia é o mais notável e conseguido exemplo de cooperação e de gestão conjunta de soberanias. Constitui um modelo para outras organizações e regiões do globo.

Este é o cerne do projecto europeu. Perder de vista esta abordagem histórica é perder a noção de que os sucessos da Europa se vão sedimentando a cada dia, e de que para os preservar para gerações futuras devemos continuar a trabalhar em conjunto. E há que recordá-lo no início deste debate.

Temos, por outro lado, de ter em conta as recentes transformações ocorridas na cena internacional, na geografia política da Europa e no paradigma da economia – evoluções essas por vezes surpreendentemente rápidas e radicais que modificaram de forma substancial o quadro em que o processo de integração europeia se move:

- No plano político, a implosão da União Soviética e o fim da Guerra Fria abalaram o mundo e os equilíbrios políticos, levando a Europa, principal palco destes acontecimentos, a reencontrar-se com a sua matriz humanista e, sobretudo, a ir ao encontro das aspirações das jovens democracias que então despontavam. A esses desígnios vieram somar-se, em particular após o “11 de Setembro”, preocupações resultantes da agudização das ameaças terroristas e da necessidade de aproximar povos e civilizações.

- Por um prisma económico, a alteração dos modelos produtivos, o envelhecimento da população, a emergência de novas potências económicas dotadas de vastíssimos recursos, os problemas energéticos e os fenómenos da globalização, vieram trazer desafios acrescidos a uma Europa em perda de competitividade mas que não deve acomodar-se
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A União Europeia precisou de tempo para se adaptar. Surgiram em diversos quadrantes nuvens de incerteza sobre a sustentabilidade do modelo social europeu e do próprio projecto de construção europeia. Porém, a União delineou uma estratégia de resposta ao adoptar, por ocasião da Presidência portuguesa em 2000, a Estratégia de Lisboa, destinada a melhorar a competitividade europeia. A Estratégia identifica as políticas e os meios para colmatar o relativo atraso para que a Europa resvalou face aos seus parceiros internacionais.

Na verdade, e como se veio a comprovar, a Estratégia de Lisboa constituiu e constitui uma reacção lúcida e criativa a uma situação difícil e complexa, estabelecendo metas concretas para a redução do desemprego, o incremento da produtividade e o aumento do crescimento económico. Estes desígnios, como a Cimeira de Hampton Court e o Conselho Europeu deste mês reiteraram, continuam a ser os objectivos prioritários da União.

É apostando com decisão na economia do conhecimento, na inovação, na qualificação da educação, e no desenvolvimento da ciência e tecnologia que a Europa deverá avançar, preservando simultaneamente as características centrais do seu modelo social. Apenas por esta via poderemos garantir que a Europa manterá um lugar de vanguarda social e económica no mundo e que os europeus continuarão a usufruir dos elevados padrões de vida a que estão habituados.

Se muitos Estados europeus vivem situações económicas e sociais delicadas, não será por falta de resposta da União a esses desafios. A União Europeia e cada um dos seus Estados-membros tem pois que ultrapassar esta conjuntura pondo em prática as linhas de acção consensualmente definidas pela Estratégia de Lisboa.

O último alargamento marcou a História da União Europeia. Foi o maior de todos e reflectiu o quadro internacional resultante dos acontecimentos marcantes do final da década de 80. Por essa razão, este alargamento encerra em si mesmo uma incontornável legitimação histórico-política.

Perfilam-se agora novas candidaturas à adesão, de natureza qualitativa diversa, motivadas por razões de ordem política, económica e social. A União Europeia continua a ser um forte pólo de atracção para Estados do continente europeu, ansiosos por aderir a um espaço de estabilidade e de bem-estar. Naturalmente, não questionamos as aspirações de qualquer um desses países, nem a necessidade de conferir uma perspectiva europeia aos Estados dos Balcãs Ocidentais.

Importará, no entanto, reflectir com ponderação sobre a extensão do projecto europeu e os seus limites geográficos. Essa reflexão sobre as fronteiras da União Europeia deve ter em consideração factores internos e externos.

Ao equacionar a extensão geográfica da União Europeia, deveremos nortear-nos pela preservação dos níveis de integração e de coesão alcançados – e que são, afinal, a essência do projecto europeu. Haverá limites reais à eficácia da União, à sua capacidade de cumprir os propósitos, objectivos e finalidades para que foi criada. A coerência do projecto de integração europeia deve ser - sob pena de diluição - salvaguardado.

Levantam-se também, a este propósito, importantes questões de índole geo-estratégica. Futuros alargamentos da União não poderão ignorar o meio internacional em que decorram nem a visão global dos interesses europeus.

A consolidação do projecto europeu passa também por um reforço da acção externa da União. A União alargada, com 25 Estados-membros, mais de 450 milhões de cidadãos e responsável por um quarto da produção mundial, é inevitavelmente um actor global e deve estar pronta a assumir a sua quota-parte de responsabilidade pelos destinos da comunidade internacional.

Mas não é correcto escamotear a realidade, uma vez que subsistem sérias debilidades. É necessário reforçar os mecanismos que permitam à União projectar-se no exterior, prosseguindo com eficácia os objectivos comuns que queira identificar tomando por referência o quadro de valores europeu.

A chave de uma acção externa assente em valores comuns e à altura das interrogações do nosso tempo reside, como em tantas outras áreas de actuação da União, na igualdade e na confiança entre todos os seus Estados-membros. A vontade política comum deve ter por base valores e interesses partilhados, a par das realidades históricas próprias de cada Estado-membro.

O que se pretende é instituir uma política externa “comum”, e não “una”. A criação de um consenso europeu, de uma verdadeira política externa da União Europeia, ir-se-á construindo à medida que os interesses e objectivos dos Estados-membros forem convergindo. Esse fenómeno resultará gradual e naturalmente do aprofundamento e da consolidação do processo de integração europeia.

Para finalizar, queria retomar as minhas palavras iniciais e recordar que o que nos une a nós, cidadãos e Estados-membros da União Europeia, é um projecto assumido em comum, traçado ao longo de cinco décadas seguindo a “política dos pequenos passos” preconizada por Monnet e paulatinamente orientado no sentido de uma integração mais profunda. Os ganhos são imensos – percorremos um longo caminho desde as confrontações que assolaram o nosso continente à prática diária da negociação em Bruxelas.

Espero que este conjunto de ideias possa servir de ponto de partida para uma reflexão serena, aproveitando o debate nacional que hoje se inicia para fazer um balanço da nossa pertença ao projecto europeu.

A avaliação a fazer sobre a Europa deve ter presentes três elementos. Primeiro, o valor ímpar que representa a solidariedade entre Estados soberanos que criou o maior período de paz, estabilidade e prosperidade alguma vez registado no continente europeu. Segundo, a necessidade de adaptação do projecto europeu, quer à sua extensão, quer aos decisivos desafios económicos que a globalização implica. Terceiro, que este projecto não pode ser dado como garantido se não lutarmos por ele todos os dias.

É em torno desta equação que se perspectiva o debate sobre o Futuro da Europa, e é nesse contexto que deve ser encarado o Tratado Constitucional. O Tratado procurou simplificar o edifício jurídico da União, agilizar o processo de tomada de decisão e habilitar as Instituições Comunitárias a lidar com a dinâmica de uma União alargada. Não obstante, as bem conhecidas vicissitudes que afectaram o Tratado travaram os processos de ratificação. Daqui nasceu, precisamente, a “pausa para reflexão” em que nos situamos.

Devemos assim incluir no nosso debate o futuro do Tratado Constitucional, associando-nos plenamente a um enriquecedor exercício a nível europeu. Sublinho no entanto que esta reflexão conjunta não deve dar ensejo a que se multipliquem iniciativas sobre o Tratado – o que nos deve mover é a busca de uma solução e de um rumo por todos aceitáveis. Por esse motivo discordamos de qualquer tentativa de aplicação parcelar de disposições isoladas do Tratado – documento que foi pensado, negociado e subscrito como uma unidade e não como uma mera amálgama de disposições.

É neste espírito que se deve estimular o debate nacional, destinado a promover o conhecimento das questões em discussão no contexto europeu e a colher o sentimento dos portugueses a respeito das grandes opções com que a União se depara ao traçar as suas políticas voltadas para o futuro.

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