1 de outubro de 2004

Cônsul de Toronto. A Carta do Canadá de Fernanda Leitão

Transmite-se a VEXA e para circulação ostensiva, a Carta do Canadá. De Fernanda Leitão.

Arquive-se.


CARTA DO CANADÁ
Fernanda Leitão

CASO DO CÔNSUL DE PORTUGAL

Porque a destituição e regresso a Lisboa do antigo cônsul de Portugal em Toronto, Artur Monteiro de Magalhães, acabou por se transformar numa arruaça que ultrapassou fronteiras, graças à inabilidade e falta de bom senso do diplomata, que deitou mão do perigoso processo de animar os funcionários do consulado e o reduzido (e questionado) sector dos seus próximos amigos ocupando direcções de clubes locais a uma rebelião gratuita, porque não fundamentada na verdade dos factos e apenas assente na versão do próprio cônsul, creio ser chegado o momento de, munida de documentação a que tive acesso, fazer um balanço da situação. Faço-o pelo respeito que devo ao bom nome de Portugal e ao que me merece a comunidade portuguesa do Ontário e Manitoba, mais uma vez agravada por uma liderança egoista e sem a menor noção de bem comum.

Vamos, pois, recapitular.

Na noite de 21 de Agosto, ao regressar a Toronto depois de um jantar de festa na região de Aurora, Artur de Magalhães decidiu encostar o carro na berma da autoestrada e passar pelo sono, o que não é permitido pela lei deste e de muitos outros países. Apenas são permitidas paragens de emergência, portanto de curta duração, destinadas a pedir socorro, o que bem se compreende porque, numa via de alta velocidade, resulta perigoso um carro parado longo tempo, e sobretudo à noite. A patrulha de trânsito acabou por aparecer e, naturalmente, pediu a Artur Magalhães que mostrasse os seus documentos e soprasse no balão para o teste de alcoolémia. Magalhães recusou peremptoriamente, invocando o seu estatuto de diplomata, mostrando assim desconhecer que o Canadá não reconhece a imunidade em casos destes, apenas reconhecendo a imunidade funcional, de acordo com o artigo 43 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares. Os agentes da polícia insistiram, como era seu dever, ao mesmo tempo que chamavam um oficial superior por se tratar de um assunto que envolvia um cidadão estrangeiro, sendo de admitir que o fizeram com correcção, como é timbre da polícia e da população canadiana em geral, mas com firmeza. Magalhães recalcitrou, exaltou-se, agrediu na face um dos polícias. Foi dominado, algemado e recebeu voz de prisão. Entretanto chegou ao local uma oficial superior da polícia, a quem Magalhães decidiu propor uma negociação: tirava-lhe as algemas, anulava o mandato de prisão e, em contrapartida, ele mostrava os documentos e soprava no balão. A reviravolta, percebeu-se nos dias que se seguiram e sobretudo durante o almoço de despedida com o pessoal do consulado, ficou a dever-se ao pânico de aparecer em jornais e televisões algemado e preso. A oficial aceitou e encaminhou o auto para o Ministério das Relações Exteriores do Canadá.

Três dias depois, a Encarregada de Negócios da Embaixada de Portugal em Otava, Dra. Maria João Boavida, transmitiu ao Ministério das Relações Exteriores do Canadá a versão em inglês do acidente, redigida pelo cônsul. De seguida, o embaixador Silveira Carvalho informou oficialmente a Secretaria Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, ao mesmo tempo que enviava as duas versões elaboradas pelo cônsul, em português e em inglês. Em paralelo, desde o princípio, o embaixador procurou saber junto do governo do Canadá da disposição deste quanto à possibilidade de interceder junto do Ministério Público de Aurora para que o processo fosse arquivado, e manteria estas diligências e disponibilidade até ao termo da questão.

O termo chegou quando o Ministério das Relações Exteriores informou o embaixador do teor do relatório policial, afirmando preto branco que um polícia tinha sido agredido na face, pelo que o Ministério Público tinha decidido apresentar queixa-crime contra Artur Magalhães, estando o julgamento marcado para 5 de Outubro. Posto ao corrente da situação, o Ministério dos Negócios Estrangeiros ordenou ao embaixador que negociasse com o governo do Canadá o arquivamento do processo, portanto sem julgamento à revelia, contra a saída imediata do cônsul e território canadiano. O governo canadiano aceitou e o cônsul Magalhães foi notificado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de que deveria saír do Canadá até ao dia 30 de Setembro, decisão ministeral que, afirmava, “se devia ao facto de se pretender assegurar a defesa dos interesses do estado e da Comunidade Portuguesa, nomeadamente através da preservação da figura e das funções do Cônsul Geral”. Esta fase do processo parece demonstrar que o teor do relatório policial constituíu uma surpresa para as autoridades portuguesas pelo facto de ser diametralmente oposto aos relatórios de Magalhães, nos quais este se apresentava como vítima.

O cônsul saíu do Canadá no dia 25 de Setembro, sem retorno a este país. Infelizmente, saíu sem grandeza, sem linha nem postura digna de um diplomata ou mesmo de um gentleman. Desdobrou-se em acusações ao embaixador e ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, acolitado pelo pessoal consular, coberto pelo silêncio do correspondente local da LUSA, confortado com as promessas de manifestações, em Lisboa e Otava, por parte da minoria que serviu durante 13 meses, com intimidade deslocada e imprópria, ao arrepio dos verdadeiros interesses da comunidade portuguesa. Foi um servidor interessado do pior secretário de estado das Comunidades que já passou pelo Largo do Rilvas, José Cesário, pródigo em políticas de uma demagogia insultuosa, mas pelos vistos recompensado visto que continua sendo secretário de estado no actual governo. Desta vez nas autarquias...

Sabe-se que o MNE ordenou um inquérito dirigido pelo actual secretário de estado das Comunidades, Carlos Gonçalves, o que escandalizou a comunidade portuguesa. Gonçalves, um antigo funcionário do consulado de Portugal em Paris, é velho amigo do cônsul Magalhães que, por ter sabido tirar da partidocracia todas as vantagens, já foi deputado pela Emigração, o que lhe serviu de trampolim para o governo. Foi uma escolha muito infeliz esta do MNE. Como infeliz foi a ida a Lisboa dum grupo que, sobre participar este fim de semana de um jantar das Academias do Bacalhau, no Casino do Estoril, para onde convidou o ex-cônsul Magalhães, se dispõe a manifestações e outras exibições de quem transforma assuntos sérios em desafios Sporting-Benfica.

A Comunidade Portuguesa de Toronto está calma, mas atenta e magoada com mais este episódio grotesco envolvendo um diplomata português. É que não passam as más recordações deixadas pelo cônsul Tânger Correia, havendo mesmo muitas pessoas que por aqui dizem que, se não fosse travado a tempo, Magalhães repetiria as façanhas do antecessor. E afinal, tudo se repete por parte duma classe dirigente comunitária que se compraz em apoiar quem não deve. Apoiaram o homem que atropelou mortalmente uma garotinha canadiana, desapareceu do local sem lhe prestar assistência e fugiu cobardemente para Portugal, ao mesmo tempo que insultaram o jornalista luso-canadiano Dale Brazão, que o encontrou, e desdobraram-se em manifestações de rua. Apoiaram Tânger Correia, com auxílio de algumas funcionárias consulares, insultaram tudo e tudos, ameaçaram, como ameaçam agora de fazer a vida dura ao cônsul que vier, para depois fazerem o que fazem sempre: lamberem os pés dos diplomatas de serviço, na ânsia de uma condecoração, de um subsídio ou ao menos de apareceram nas televisões e jornais ao lado deles. Se Portugal não estivesse desgraçado pela mais reles partidocracia, há muito tempo estes dirigentes comunitários, labregamente convencidos que são os donos da comunidade, teriam caído de maduros. Em lugar de educar, o governo português só tem deseducado. Mas como dizem por aqui os mais velhos, quem não tem não pode dar. Haja ao menos, agora, o bom senso de mandar para Toronto um cônsul que se dê ao respeito, que se saiba pôr no seu lugar, que faça trabalhar os funcionários do consulado para a comunidade não estar tão revoltada como está devido aos maus serviços prestados, que ponha em sentido a parte podre do pessoal consular e reconheça o mérito de alguns empregados competentes e diligentes que ali sofrem a má imagem produzida por outros.

Artur Monteiro de Magalhães deixou sérios rabos de palha em Bissau e em Versalhes, por isso tendo sido punido com vários anos de trabalho obscuro no ministério. Toronto foi a última oportunidade que lhe foi proporcionada de refazer a carreira. Não soube aproveitar a oportunidade porque se convenceu que Toronto era Bissau, ao lidar com novos amigos que têm toda uma cultura de servilismo perante o Dr., o diplomata, o gabarola que arrota mundos e fundos. Não é essa a cultura dos canadianos. Nem, felizmente, a da maior e mais significativa parte dos portugueses residentes no Canadá. Somos gente de cabeça levantada num país, que por ser democrata e livre, sabe o valor do respeito mútuo entre pessoas oriundas de 160 países.

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