23 de setembro de 2009

Lula da Silva

Discurso do Presidente do Brasil, Lula da Silva
no Debate Geral da 64.ª sessão da Assembleia Geral da ONU.

Arquive-se.


Nova York, 23 de setembro de 2009

1

Meus cumprimentos ao Presidente da Assembléia Geral, Ali Treki, ao Secretário-Geral, Ban Kimoon, e a todos Chefes de Estado e delegados presentes. Senhoras e senhores, A Assembléia Geral das Nações Unidas tem sido, e deve ser cada vez mais, o grande foro de debate sobre os principais problemas que afligem a humanidade.

Quero abordar aqui três questões cruciais, que me parecem interligadas. Três ameaças que pairam sobre nosso planeta: a persistência da crise econômica, a ausência de uma governança mundial estável e democrática e os riscos que a mudança climática traz para todos nós.
Senhor Presidente,

Há exatamente um ano, no limiar da crise que se abateu sobre a economia mundial, afirmei desta tribuna que seria um grave erro, uma omissão histórica imperdoável, cuidarmos apenas das conseqüências da crise sem enfrentarmos as suas causas. Mais do que a crise dos grandes bancos, essa é a crise dos grandes dogmas. O que caiu por terra foi toda uma concepção econômica, política e social tida como inquestionável. O que faliu foi um insensato modelo de pensamento e de ação que subjugou o mundo nas últimas décadas.

Foi a doutrina absurda de que os mercados podiam auto-regular-se, dispensando qualquer intervenção do Estado, considerado por muitos um mero estorvo. Foi a tese da liberdade absoluta para o capital financeiro, sem regras nem transparência, acima dos povos e das instituições. Foi a apologia perversa do Estado mínimo, atrofiado, fragilizado, incapaz de promover o desenvolvimento e de combater a pobreza e as desigualdades. A demonização das políticas sociais, a obsessão de precarizar o trabalho, a mercantilização irresponsável dos serviços públicos.

A verdadeira raiz da crise foi o confisco de grande parte da soberania popular e nacional – dos Estados e dos governos democráticos – por circuitos autônomos de riqueza e de poder.

Afirmei que era chegada a hora da política. Disse que governantes – e não tecnocratas arrogantes – deveriam assumir a responsabilidade de enfrentar a desordem mundial. O enfrentamento da crise e a correção de rumo da economia mundial não poderiam ficar apenas a cargo dos de sempre. Os países desenvolvidos – e os organismos multilaterais onde eles eram hegemônicos – foram incapazes de prever a catástrofe que se iniciava e, menos ainda, de preveni-la.

Os efeitos da crise se espalharam por todo o mundo, golpeando inclusive, e sobretudo, àqueles que há anos vinham reconstruindo suas economias com enormes sacrifícios.
Não é justo que o custo da aventura especulativa seja assumido pelos que nada têm a ver com ela – os trabalhadores e as nações pobres ou em desenvolvimento.

Passados doze meses, constatamos que houve alguns progressos mas que persistem muitas indefinições. Ainda não há uma clara disposição para enfrentar, no âmbito multilateral, as graves distorções da economia global. O fato de ter sido evitado o colapso total do sistema parece ter provocado em alguns um perigoso conformismo.


2

A maioria dos problemas de fundo não foi enfrentada. Há enormes resistências em adotar
mecanismos efetivos de regulação dos mercados financeiros. Países ricos resistem em realizar reformas nos organismos multilaterais, como o FMI e o Banco Mundial. É incompreensível a paralisia da Rodada de Doha, cujo acordo beneficiará sobretudo as nações pobres. Há sinais inquietantes de recaídas protecionistas. Pouco se avançou no combate aos paraísos fiscais.
Mas muitos países não ficaram de braços cruzados.

O Brasil – um dos últimos, felizmente, a sentir os efeitos da crise – é hoje um dos primeiros a sair dela. Não fizemos nenhuma mágica. Simplesmente havíamos preservado nosso sistema financeiro do vírus da especulação. Havíamos reduzido nossa vulnerabilidade externa, passando da condição de devedores à de credores internacionais. Decidimos, junto com outros países, aportar recursos para que o FMI empreste dinheiro aos países mais pobres sem os condicionamentos inaceitáveis do passado. Mas, sobretudo, desenvolvemos antes da crise, e depois que ela eclodiu, políticas anti-cíclicas. Aprofundamos nossos programas sociais, especialmente os de transferência de renda. Aumentamos os salários acima da inflação. Estimulamos, por meio de medidas fiscais, o consumo para impedir que se detivesse a roda da economia.

Já saímos da breve recessão. Nossa economia retomou seu ímpeto e anuncia um 2010 promissor.

As exportações recuperam seu vigor. O emprego se recompõe de forma extraordinária. O equilíbrio macroeconômico foi preservado sem afetar as conquistas populares.

O que o Brasil e outros países demonstraram é que também nos momentos de crise precisamos realizar audaciosos programas sociais e de desenvolvimento.

Mas não tenho a ilusão de que poderemos resolver nossos problemas sozinhos, apenas no espaço nacional. A economia mundial é interdependente. Estamos todos obrigados a atuar além de nossas fronteiras. Por isso, é imprescindível refundar a ordem econômica mundial.

Nas reuniões do G20 e nos muitos encontros que mantive com líderes mundiais tenho insistido sobre a necessidade de irrigar a economia mundial com importantes créditos. Tenho defendido a regulação financeira, a generalização de políticas anti-cíclicas, o fim do protecionismo, o combate aos paraísos fiscais.

Com a mesma determinação, meu país propõe uma autêntica reforma dos organismos financeiros multilaterais.

Os países pobres e em desenvolvimento têm de aumentar sua participação na direção do FMI e do Banco Mundial. Sem isso não haverá efetiva mudança e os riscos de novas e maiores crises serão inevitáveis. Somente organismos mais representativos e democráticos terão condições de enfrentar complexos problemas como os do reordenamento do sistema monetário internacional.

Não é possível que, passados 65 anos, o mundo continue a ser regido pelas mesmas normas e valores dominantes quando da conferência de Bretton Woods.

Não é possível que as Nações Unidas, e seu Conselho de Segurança, sejam regidos pelos mesmos parâmetros que se seguiram à Segunda Guerra Mundial.

Vivemos um período de transição no âmbito internacional. Caminhamos em direção ao mundo multilateral. Mas também multipolar, seguindo as experiências de integração regional, como ocorre na América do Sul com a constituição da UNASUL.

3

Esse mundo multipolar não será conflitante com as Nações Unidas. Ao contrário. Poderá ser um fator de revitalização da ONU.

De uma ONU com a autoridade política e moral para solucionar os conflitos do Oriente Médio, garantindo a coexistência de um Estado Palestino com o Estado de Israel.

De uma ONU que enfrente o terrorismo sem estigmatizar etnias e religiões, mas atacando suas causas profundas e promovendo o diálogo de civilizações.

De uma ONU que assuma a ajuda efetiva a países – como o Haiti – que buscam reconstruir sua economia e seu tecido social depois de haver recuperado a estabilidade política.

De uma ONU que se comprometa com o Renascimento africano que hoje assistimos.

De uma ONU capaz de adotar políticas eficientes de preservação e ampliação dos Direitos Humanos.

De uma ONU que possa avançar no caminho do desarmamento estabelecendo um real equilíbrio entre este e a não-proliferação.

De uma ONU que lidere cada vez mais as iniciativas para preservar o ambiente.

De uma ONU que, por meio do ECOSOC, incida nas definições sobre o enfrentamento da crise econômica.

De uma ONU suficientemente representativa para enfrentar as ameaças à paz mundial, por meio de um Conselho de Segurança renovado, aberto a novos membros permanentes.

Não somos voluntaristas. Mas sem vontade política não se pode enfrentar e corrigir situações que conspiram contra a paz, o desenvolvimento e a democracia. Sem vontade política persistirão anacronismos como o embargo contra Cuba.

Sem vontade política continuarão a proliferar golpes de Estado como o que derrocou o Presidente constitucional de Honduras, José Manuel Zelaya, que se encontra, desde segunda-feira, refugiado na embaixada do Brasil em Tegucigalpa. A comunidade internacional exige que Zelaya reassuma imediatamente a Presidência de seu país e deve estar atenta à inviolabilidade da missão diplomática brasileira na capital hondurenha. Sem vontade política, por fim, crescerão as ameaças hoje representadas pela mudança climática no mundo.

Todos os países devem empenhar-se em realizar ações para reverter o aquecimento global. Preocupa-nos a resistência dos países desenvolvidos em assumir sua parte na resolução das questões referentes à mudança do clima. Eles não podem lançar sobre os ombros dos países em desenvolvimento responsabilidades que lhes são exclusivas.

O Brasil está cumprindo a sua parte. Vamos chegar a Copenhague com alternativas e compromissos precisos.

Aprovamos um Plano de Mudanças Climáticas que prevê uma redução de 80% do desmatamento da Amazônia até 2020. Diminuiremos em 4,8 bilhões de toneladas a emissão de CO2, o que representa 4 mais do que a soma dos compromissos de todos os países desenvolvidos juntos. Em 2009 já podemos apresentar o menor desmatamento dos últimos 20 anos.
A matriz energética brasileira é das mais limpas do planeta. 45% da energia consumida no país é renovável. No resto do mundo apenas 12% é renovável, enquanto que nos países da OCDE essa proporção não supera 5%. Oitenta por cento de nossa eletricidade provém igualmente de fontes renováveis. Vinte e cinco por cento de etanol está misturado à gasolina que consomem nossos veículos. Mais de 80% dos carros produzidos no país têm motor flex, o que permite a utilização indiscriminada de gasolina ou álcool. O etanol brasileiro e os demais biocombustíveis são produzidos em condições cada vez mais adequadas, sobretudo a partir do zoneamento agro-ecológico que acabamos de implantar no país. Proibimos a cana-de-açúcar e as usinas de álcool em áreas de vegetação nativa. A decisão vale para toda Amazônia e nossos principais biomas. O plantio da cana-de-açúcar não ocupa mais do que 2% de nossas terras agricultáveis. Distinto de outros biocombustíveis, ele não afeta nossa segurança alimentar nem compromete o equilíbrio ambiental. Empresários, trabalhadores e governo firmaram um importante compromisso para assegurar o trabalho decente nos canaviais brasileiros.

Todas essas preocupações fazem parte da política energética de um país auto-suficiente em petróleo e que acaba de descobrir grandes reservas que nos colocarão na vanguarda da produção de combustíveis fósseis.

Mas o Brasil não renunciará à agenda ambiental para ser apenas um gigante do petróleo. Queremos consolidar nossa condição de potência mundial da energia verde.

Por outro lado, deve-se exigir dos países desenvolvidos metas de redução de emissões muito mais expressivas do que as atuais, que representam mera fração do que é recomendado pelo Painel Intergovernamental para a Mudança do Clima.

Causa-nos também profunda preocupação a insuficiência dos recursos, até agora anunciados, para as necessárias inovações tecnológicas que preservarão o ambiente nos países em desenvolvimento.

A resolução desses e outros impasses só ocorrerá se as ameaças ligadas à mudança climática forem enfrentadas a partir da compreensão de que temos responsabilidades comuns, mas diferenciadas.

Os temas que estão no centro de nossas preocupações – a crise financeira, a nova governança mundial e a mudança do clima – têm um forte denominador comum. Ele aponta para a necessidade de construir uma nova ordem internacional, sustentável, multilateral, menos assimétrica, livre de hegemonismos e dotada de instituições democráticas.

Esse mundo novo é um imperativo político e moral.

Não basta remover os escombros do modelo que fracassou, é preciso completar o parto do futuro. É a única forma de reparar tantas injustiças e de prevenir novas tragédias coletivas.

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