Para que conste. Transmite-se intervenção do Embaixador de Portugal no Brasil,Francisco Seixas da Costa, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (Lisboa, 2 de Maio de 2005)
Arquive-se.
Seixas da Costa.
PORTUGAL E A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
O tema desta minha intervenção – “Portugal e a Política Externa Brasileira” – pode parecer um pouco arriscado e ousado, em particular pelo facto de ser abordado pela pessoa que exerce actualmente as funções de embaixador de Portugal no Brasil. Como fui eu próprio quem escolheu o tema, quero dizer que assumo, com gosto e sem problemas, os eventuais “riscos” que possa correr ao abordá-lo.
A ideia central deste exercício é partir daquilo que são os parâmetros essenciais que podem ajudar a definir a actual política externa brasileira e tentar cruzá-los com as linhas centrais que possamos identificar na afirmação externa portuguesa. A partir daí, procurarei constar apenas o que for óbvio: as coincidências, as eventuais dissonâncias ou os diferentes sublinhados.
A meu ver, uma gestão da acção diplomática portuguesa no Brasil só ganha em ter os pés bem assentes na efectiva realidade das coisas e só perde quando se alimenta dos falsos consensos, da retórica histórica e de uma espécie de voluntarismo afectivo.
A observação da política externa brasileira, ao longo dos tempos, é um exercício fascinante, para o qual podemos contar hoje com uma óptima historiografia e uma análise teórica interna de grande valia científica. Servida por uma excelente escola de diplomacia, mundialmente reconhecida, a política externa brasileira configura um dos mais bem sucedidos modelos ditos “do Sul”. E os últimos anos mais não têm feito do que confirmar que estamos perante um modelo coerente e dinâmico.
Embora seja sempre difícil, e mesmo caricatural, tentar tipificar um quadro de opções externas, pode dizer-se que o Brasil assenta a sua afirmação internacional em alguns postulados-base. Vou tentar identificá-los em cinco grandes grupos:
- necessidade do reforço do tecido político-económico regional em que o Brasil está inserido, com vista a favorecer o desenvolvimento económico-social colectivo e a criação de condições para um futuro de paz e estabilidade de todos os Estados da região, bem como a servir de instrumento de interlocução a um nível mais global;
- preeminência do sistema multilateral, como principal instrumento regulador da sociedade internacional, ao qual importará introduzir mudanças que, simultaneamente, reforcem as suas democraticidade, legitimidade e credibilidade;
- política alargada de criação de acordos e entendimentos estratégicos “a Sul”, como forma de gerar uma dinâmica multipolar na ordem mundial e abrir espaço para novos e criativos modelos de articulação entre países em desenvolvimento, com impactos na respectiva relevância à escala global;
- afirmação de liderança na gestão do posicionamento dos países em desenvolvimento na ordem económica internacional, em especial no quadro da OMC e nas negociações comerciais entre espaços de integração regional;
- titularização de uma agenda própria “do Sul” na ordem internacional, nomeadamente através da promoção de políticas multilaterais de combate à fome, à pobreza e à exclusão social, bem como a transformação das instituições financeiras internacionais à luz de uma nova filosofia no apoio aos processos de desenvolvimento.
Embora estes cinco “tirets” estejam longe de esgotar a ambiciosa agenda internacional do Brasil, eles representam, na minha perspectiva, os eixos que nos importa considerar para o modelo de abordagem a que nos propuzémos.
Vamos tentar analisar, perante cada um deles, o modo como Portugal se situa.
Quanto ao primeiro ponto – reforço do sistema político-económico regional, começaria por notar que foi sempre com grande entusiasmo que Portugal acompanhou a formação do Mercosul, a densificação do seu tecido de políticas e o seu carácter embrionário como elemento de integração regional. Desde o primeiro momento, o nosso país reconheceu as virtualidades deste projecto para o desenvolvimento económico-social dos países envolvidos e dos que poderia vir a abranger, tanto mais que ele significava a vitória de uma ordem de valores de liberdade, democracia e justiça social que eram comuns ao próprio projecto europeu em que nos inserimos.
Portugal tem notado que os projectos que envolvam a América do Sul têm representado, para o Brasil, uma prioridade nos modelos de entendimento que procura promover no âmbito do continente americano. Percebemos a racionalidade geopolítica desta opção, tanto mais que se torna evidente que há lógicas de vizinhança próxima que facilitam a identificação de interesses comuns, seja na coordenação estratégica em matérias de natureza política mais global, seja na abordagem de temas transnacionais com uma dimensão regional específica, como o combate ao narcotráfico e à criminalidade que lhe está associada.
De facto, ao procurar reforçar a América do Sul com uma crescente identidade própria, de que o projecto da Comunidade Sul-Americana das Nações é uma interessante evolução em termos de modelo de cooperação política à escala regional, o Brasil está a contribuir, de forma decisiva, para se afirmar, como grande país democrático que é, como uma potência de influência susceptível de ser um eixo de articulação da sua vizinhança próxima. Isso permitirá favorecer a capacidade de prevenção de conflitos intra-regionais (como se viu, há pouco tempo, no incidente que envolveu a Colômbia e a Venezuela), e para contribuir, ao lado de outros, para a criação de plataformas colectivas de promoção de diálogo que facilitem a regularização de eventuais tensões internas nos Estados vizinhos (como foram os casos da Bolívia e, mais recentemente, do Equador).
Neste quadro, e não sendo um país da região, compreender-se-á que Portugal não possa ser indiferente, por razões que são óbvias, à evolução das tensões na Venezuela. Na passada semana, numa conferência de imprensa, o Presidente Lula referia ter ele próprio estimulado os líderes portugueses a manterem-se empenhados neste importante dossiê, onde se jogam interesses vários e, em especial, riscos geopolíticos que excedem a dimensão nacional do caso em si. Continuamos sempre disponíveis para tal.
Para Portugal, a criação de uma massa crítica própria que permita auxiliar à resolução dos conflitos regionais e à promoção de soluções constitucionais para redução da conflitualidade dentro dos Estados, constitui um interessante objectivo. Tem sido essa, aliás, a linha que defendemos noutros quadrantes geográficos.
Todos temos de ter a consciência que outras alternativas a este modelo poderão passar pela presença condicionante ou constrangente de poderes exógenos à região, normalmente aproveitando a fragilidade ou a complacência de parceiros, com consequências históricas que configurariam muito mais do que um recuo temporário. É que, em política internacional, os riscos de contágio são sempre elevados.
Mas também percebemos que a vocação regional do Brasil se não esgota a sul do continente, porque, como diz Marco Aurélio Garcia, “a ênfase sul-americana da política externa brasileira não significa abandonar uma perspectiva latino-americana e caribenha”. É o que fica evidente, por exemplo, no caso da liderança brasileira das forças multinacionais no Haiti e na sua política, muito específica, face a Cuba.
No primeiro caso, a presença brasileira no Haiti configura uma tendência de responsabilização regional que, como disse, vai no sentido que Portugal preconiza como desejável em matéria de operações de paz.
No segundo caso, o nosso país revê-se na leitura europeia que pugna pela necessidade do regime cubano dar concretos sinais de abertura em termos de respeito pelos Direitos Humanos e pelos princípios democráticos. Como o Brasil, discordamos da tentativa de aplicação extra-territorial de normas legais impostas num quadro nacional específico e entendemos, contra a opinião de outros, que as portas do diálogo político não se podem fechar. Sem querer ir muito mais longe neste tema, eu diria que o Brasil tem, apesar de tudo, uma leitura mais flexível do que a União Europeia quanto à condicionalidade política que deverá ser apresentada a Cuba, no quadro da sua desejável inserção na comunidade internacional. Mas o Brasil partilha o essencial das nossas preocupações.
Passaria ao segundo ponto, para sublinhar que, no tocante à preeminência do sistema multilateral, tem sido patente que há uma coincidência muito grande de pontos de vista entre Brasília e Lisboa.
Portugal é um activo defensor do multilateralismo como instrumento privilegiado de regulação da ordem internacional e, tal como o Brasil, favorece uma reforma do sistema das Nações Unidas, nomeadamente o alargamento do Conselho de Segurança onde – como sempre dissémos – o Brasil deve ter direito a um lugar, pela relevância do seu papel como actor regional, com efeitos à escala global.
Talvez não tenhamos, rigorosamente, a mesma leitura sobre as virtualidades e exequibilidade da transformação da Assembleia Geral numa espécie de contra-poder ao Conselho de Segurança, com vista a “assumir as suas responsabilidades na administração da paz e da segurança internacionais” (como proposto pelo presidente Lula), mas somos muito favoráveis um reforço deste órgão no quadro da divisão onusina de poderes.
Encaramos também com muita simpatia a perspectiva brasileira de conferir uma utilidade mais efectiva ao Conselho Económico e Social (ECOSOC) das Nações Unidas, que deve encontrar o seu ponto de articulação com o Conselho de Segurança, na prevenção dos conflitos e nos processos de reconstrução pós-conflito.
Como o Brasil, Portugal coloca o seu pleno empenho na generalização da cobertura do Tribunal Penal Internacional e do Acordo de Quioto, bem como no completar do quadro normativo internacional de combate ao terrorismo de natureza internacional. Neste particular, Portugal, tal como o Brasil, salienta a necessidade de serem tidas em atenção as raízes sociais, económicas e políticas do terrorismo, nomeadamente de natureza regional, e defende que o seu combate deve sempre fazer-se no escrupuloso respeito pelos Direitos Humanos.
Aqui chegados, convirá relevar que Portugal assume hoje, no seu desenho de evolução desejável da ordem multilateral, uma diplomacia ética como um dos factores identitários fundamentais da sua política na ordem externa. Assim, e na perpectiva portuguesa, os limites à não-ingerência deixam de ser válidos quando estiverem em causa valores maiores de natureza humanitária, da defesa da ordem democrática, do Estado de Direito e da protecção dos cidadãos e dos seus direitos fundamentais, nomeadamente o exercício pleno das liberdades políticas e de expressão.
Uma terceira ordem de prioridades do Brasil liga-se à sua recente vocação para o estabelecimento de acordos estratégicos com outros Estados do Sul.
Nos últimos anos, e no prolongamento de uma política de diálogo que, desde há muito, soube construir e prolongar com outros actores internacionais, o Brasil revelou um interessante dinamismo que o conduziu a entendimentos de natureza bilateral ou pluri-nacional, de grande alcance potencial. O objectivo concreto é, nas palavras utilizadas pelo presidente Lula no seu discurso de posse, “estimular os incipentes elementos de multipolaridade da vida internacional contemporânea”.
Algumas críticas surgiram no mercado dos comentadores internos face a esta opção brasileira por dar ênfase à sua relação com os países em desenvolvimento. Ora a verdade é que nada indica que esta opção tenha sido feita em aberto detrimento de outras dimensões externas. O que aconteceu é que esse movimento foi simultâneo com a ocorrência de alguns bloqueamentos na relação no Brasil com o “Norte”, de que são exemplo as dificuldades técnicas em torno da negociação da ALCA, os problemas negociais no estabelecimento do acordo Mercosul-UE e os atrasos ocorridos no debate do dossiê agrícola no quadro da OMC, no âmbito do ciclo de Doha.
Mas voltemos às escolhas externas de novos parceiros feitas pelo Brasil.
Destacaria cinco iniciativas nesse contexto.
A primeira diz respeito à China. Com ousadia, o Brasil estabeleceu laços de natureza económica muito concretos com Pequim, concedendo à economia chinesa o seu reconhecimento como economia de mercado. Esta aposta está, a meu ver, ainda numa fase de teste, porquanto o modelo em vigor – exportação de matérias-primas do Brasil para a China e importação brasileira de produtos chineses manufacturados – não cessa de suscitar algumas reticências nos sectores industriais brasileiros concorrentes da produção chinesa, um pouco aturdidos com a invasão de mercadorias chinesas a baixo custo. Mas, eu pergunto-me, não ouvimos já isto em algum lado ?
No plano estratégico, porém, esta opção do Brasil só pode merecer encómios. Quaisquer que sejam os fantasmas de alguns, a realidade é que a China passa por um processo de transformação interna cuja evolução positiva só pode fazer-se se associada à sua consagração internacional como economia de mercado. A União Europeia, e com ela Portugal – como ficou patente na recente visita à China do Presidente Jorge Sampaio –, assume esta opção como decisiva para o equilíbrio global, pelo que a decisão brasileira é vista por nós com grande simpatia.
Ainda no campo estritamente bilateral, o Brasil encetou também uma aproximação à Rússia, consagrada por uma deslocação do presidente Putin a Brasília, havendo hoje perspectivas de um relacionamento comercial cada vez mais intenso. Também esta aproximação vai na linha que, no seio da União Europeia, temos preconizado, no sentido de garantir à Rússia um quadro crescente de articulação externa, por forma a fazer frutificar a sua economia e a reforçar a sua abertura, garantindo, por essa via, o reforço da sua estabilidade, a qual, naturalmente, não é indiferente a uma União Europeia alargada até às suas fronteiras.
Numa lógica Sul-Sul que associa os equilíbrios geopolíticos com os interesses económicos, o Brasil tem ainda feito esforços de coordenação de políticas com a Índia e com a África do Sul, com a criação do IBAS, numa articulação que combina as legítimas ambições desses três Estados em verem assegurados lugares permanentes no Conselho de Segurança na ONU e, ao mesmo tempo, conjuga interesses comuns no âmbito do comércio internacional.
Nomeadamente em relação ao primeiro daqueles propósitos, Portugal tem, como se sabe, grande simpatia pelas ambições do Brasil e da Índia e reconhece a importância da África estar representada futuramente no Conselho de Segurança, sendo Pretória um candidato perfeitamente qualificado para tal.
Finalmente, é muito interessante e está a criar alguma expectativa a reunião, sob a liderança muito clara do Brasil, que terá lugar dentro de dias em Brasília entre os Países Árabes e os países da América do Sul.
Este encontro consagra uma ofensiva diplomática de grande alcance levada a cabo, especialmente pelo Brasil, nos últimos dois anos junto dos países árabes, no sentido de tentar reforçar os laços económicos e promover um diálogo político mais substantivo entre os dois mundos. Os sinais que temos tido deste exercício são positivos, embora naturalmente sempre tributários das agendas retóricas que as questões do Próximo e Médio Orientes determinam. O facto de haver terceiros países que não escondem a sua incomodidade com o exercício é, a meu ver, a prova provada da sua real importância. Com alguma ironia, eu diria, porém, que os países da América do Sul vão dar-se conta que as suas divergências são insignificantes face ao mar de ambiguidades em que navega o mundo árabe...
Dito isto, é óbvio que se trata de uma iniciativa muito interessante que um país como Portugal não pode deixar de saudar e estimular, atentas as suas excelentes relações com os países árabes.
Finalmente, a África. Não tendo a intenção de abordar aqui a questão da CPLP, eu diria que o Brasil regressou, mais recentemente, a um renovado interesse por África, com que só podemos congratular-nos. O presidente Lula e o chanceler Celso Amorim têm desenvolvido uma ampla agenda de contactos com países africanos, com o quais desenvolvem constante diálogo político e estabelecem amplas redes de cooperação bilateral. O prestígio do Brasil em África é muito grande e só tem condições para crescer.
Na perspectiva de Portugal, que tem procurado, no âmbito bilateral, manter uma grande atenção às dificuldades de desenvolvimento e de estabilização política africana, bem como pugnado, no quadro multilateral, por políticas realistas de ajuda aos países em desenvolvimento, esta relação “Sul-Sul” que o Brasil tem titulado é da maior importância e alcance.
E passaria ao quarto ponto daquilo que eu defini como a agenda externa brasileira: a liderança dos processos negociais económicos internacionais, nos quadros da OMC e das relações com os EUA na ALCA e com a UE no Mercosul.
O presidente Lula costuma falar de uma “nova geografia económica e comercial” e, na realidade, o Brasil mostra-se muito empenhado em redesenhar esse novo mapa. Bem apoiado por um aparelho diplomático de primeira qualidade, que se treinou durante anos numa diplomacia comercial muito eficaz, o Brasil foi o grande promotor e líder do grupo apelidado de G-20, que tem tomado a dianteira nas negociações económicas multilaterais, de Cancún a Genebra. Embora recentemente tivesse de desistir da candidatura de Seixas Corrêa a director-geral da OMC – um nome que Portugal apoiaria se o candidato da UE viesse a não ser seleccionado –, o Brasil não deixará de ter um papel central nestes novos tempos da negociação, que todos desejamos possam ter sucesso.
Eventualmente menos produtivas têm sido as negociações relativas à ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) e entre o Mercosul e a UE.
No primeiro caso, os sinais de evolução são ténues e, por vezes, algo contraditórios, talvez porque não esteja adquirida por todas as partes a bondade do saldo possível deste exercício. Menos que uma questão política, com contornos ideológicos, como alguns pretendem sublinhar, o processo ALCA é tributário de lógicas técnicas muito concretas, que são a linha da frente dos obstáculos com que se defronta.
Quanto ao Mercosul, uma negociação que directamente nos afecta, eu gostava de deixar duas notas, que, desde já aviso, não são harmónicas entre si.
A primeira para registar que, no quadro da negociação agrícola do Mercosul com a UE, Portugal pode hoje considerar-se apenas um espectador interessado. Com efeito, as grandes reivindicações agrícolas europeias dizem-nos muito pouco, isto é, respeitamos a nossa solidariedade formal com os parceiros UE e nada mais. Como contribuintes líquidos da Política Agrícola Comum (PAC) da UE (isto é, de uma política em que pagamos mais do que recebemos), não temos interesses nacionais importantes a defender neste dossiê e, porventura, numa lógica de egoísmo nacional, que naturalmente não assumimos, teríamos mais vantagens, como importadores e consumidores de produtos agrícolas, se algumas das reivindicações do Mercosul acabassem a ser aceites. É com este “entusiasmado” estado de alma que estamos a acompanhar este dossiê... Nem mais, nem menos.
A segunda nota é de sentido bem contrário. Portugal é um país que, tal como outros parceiros da UE, tem vindo a defrontar-se com sérias dificuldades, no domínio pautal, mas também ao nível dos obstáculos não pautais, no escasso leque se produtos que procura colocar no mercado brasileiro. Temos, assim, uma séria divergência com o Brasil no capítulo do acesso aos mercados e não vale a pena chamar à colação a retórica da excelência das relações bilaterais para tentar iludir uma realidade que é do pleno conhecimento de todos.
Assim, eu só desejaria que as negociações entre o Mercosul e a UE pudessem progredir a breve prazo. E digo “desejaria” porque, infelizmente, não alimento grandes esperanças neste domínio.
E chegámos ao quinto e último vector das prioridades brasileiras – a promoção de uma agenda política “do Sul”.
É neste terreno que o prestígio do presidente Lula tem feito a diferença no cenário internacional. Com uma credibilidade que lhe advém do seu sucesso na luta política interna, o presidente brasileiro tem desenvolvido interessantes iniciativas tendentes a promover a tomada de consciência internacional quanto à necessidade de uma estratégia concertada na luta contra a fome, a pobreza e a exclusão social, tendo lançado a proposta da criação de um Fundo Mundial de Combate à Fome.
Numa dimensão paralela, o Brasil tem advogado a necessidade da assunção de uma diferente filosofia nas práticas das instituições de Bretton Woods. Em particular no que toca ao Fundo Monetário Internacional (FMI), com a autoridade que lhe advem do facto de ter recentemente dispensado o acordo de assistência daquela organização, o Brasil tem pugnado por uma alteração dos respectivos critérios contabilísticos, nomeadamente com vista a isentar os gastos em infraestruturas nas despesas geradoras de défice, bem como a possibilidade de protecção rápida das economias de países em desenvolvimento que venham a ser objecto de ataques especulativos.
Gostava de deixar claro que, em todas estas iniciativas, o Brasil pode contar com uma atitude favorável por parte de Portugal, cujo empenhamento em temas que envolvam apoio ao países em desenvolvimento é conhecido.
Abordámos cinco temáticas-chave no relacionamento externo do Brasil e procurámos, sobre cada uma delas, projectar a perspectiva portuguesa.
Mas nenhuma análise da política externa brasileira ficaria completa de não abordássemos explicitamente a sua relação com os Estados Unidos da América.
Qualquer leitura impressionista da opinião pública latino-americana registará, seguramente, a relação simultânea de atracção e de hostilidade face à potência hegemónica do continente. O Brasil não escapa a esta realidade e não é possível desenhar a sua história sem fazer esse contraponto constante. Os Estados Unidos tanto são vistos como o eldorado que marca os sonhos, como prefiguram a ameaça, a pressão ilegítima, um ambiente de desconfiança.
A nosso ver, a actual política externa brasileira assume uma relação de grande maturidade face aos Estados Unidos. Outra coisa não seria de esperar de um país que, sendo uma prestigiada potência regional, tem óbvias ambições como “global player”, denotando interesses que, medida a respectiva escala, hoje se intercruzam com os de Washington – de que são prova evidente as já referidas iniciativas face ao mundo árabe, bem como a sua política para a China, Índia ou mesmo no âmbito africano.
Eu diria que Washington olha hoje para Brasília como um incontornável parceiro numa América do Sul onde já entendeu não terem desaparecido os germes da instabilidade. Não é por acaso que o Sr. Rumsfeld e a Sra. Rice estiveram há escassos dias no Brasil, que Bush aí irá em Novembro, que o ministro da Casa Civil brasileiro teve um tratamento “cinco estrelas” na sua passagem, há menos de dois meses, pelos EUA.
É óbvio que aos EUA não agradam as reticências brasileiras à ALCA, como não agradaram as fortes críticas feitas à sua política para o Iraque ou a agressividade das posições brasileiras nas guerra do comércio internacional. Além disso, uma certa “compreensão” com a situação cubana ou uma proximidade tida por exagerada como regime venezuelano também não caem bem em Washingon.
Mas, “à la limite”, Washington percebe que lhe é muito útil manter uma relação privilegiada com uma grande potência democrática do sul do continente, que tem contactos e acessos que a tradicional desconfiança face a uma grande potência não deixa nunca criar.
Para o Brasil, esta “special relationship” crítica revela-se como altamente vantajosa: confere-lhe o estatuto de parceiro privilegiado de diálogo, de interlocutor perante situações de crise regionais e, ao mesmo tempo, dá-lhe a possibilidade de manter os EUA à distância física, evitando as tentações endémicas do eterno virus da “doutrina Monroe” que marca o código genético americano. Às vezes, eu pergunto-me se os vizinhos do Brasil já se aperceberam verdadeiramente das virtualidades desta realidade face à sua própria autonomia decisória.
Pela nossa parte, pela parte de Portugal, é evidente que consideramos importante a constatação desta estabilidade de relações entre o Brasil e os EUA. Ela enquadra-se perfeitamente no nosso próprio quadro de entendimento com os EUA, que é um elemento estruturante do nosso espectro de relacionamento bilateral, que não pode nunca ser dissociado da nossa própria agenda de inserção multilateral, em termos de segurança e defesa.
Vale a pena lembrar que, no nosso país, a estabilidade das relações com os EUA, que reputamos de essencial no nosso quadro externo, esteve sempre ameaçada por dois desvios de sentido contrário, ambos promotores de riscos graves de ruptura no consenso interno: a doença infantil do anti-americanismo e zelo patético dos hiper-seguidistas. Entre nós, vimos mesmo alguns caminharem de um para o outro...
Curiosamente, na história da política externa brasileira encontramos estes também estes dois síndromas a marcar tempos da relação com Washington. Porém, como antes disse, a actual política externa brasileira teve sabedoria para ultrapassar essa polarização e tem hoje um quadro estável de diálogo com os EUA, que não exclui a saudável afirmação de divergências. Também aqui nos encontramos.
Termino com uma nota que é, provavelmente, a resposta a uma curiosidade que pode existir em alguns dos que fizeram o favor de me ouvir: mas, afinal, em que se distingue o olhar português sobre o Brasil do dos restantes parceiros europeus ?
A Europa parece olhar para o Brasil como uma potência emergente dotada de um enorme potencial para se poder consagrar como uma entidade promotora dos valores da democracia e da liberdade, com um salutar efeito contagioso na sua vizinhança. Vê igualmente o país como um mercado muito interessante, dotado de uma estrutura económica pujante, que dispõe já de alguns elementos de segurança macro-económica que, em larga medida, parecem pô-lo a cobro de desequilíbrios muito pronunciados, por efeito da flutuação da conjuntura externa, económica ou política.
Mas a generalidade da Europa vê igualmente o Brasil apenas como um poder sub-regional, pelo que parte dela tem leituras diferenciadas quanto à respectiva vocação enquanto um poder global. Isso tem consequências, por exemplo, no modo como os vários países europeus olham uma possível presença brasileira no Conselho de Segurança da ONU.
Ora Portugal vê esta questão em moldes algo diferentes. A matriz de afirmação brasileira no quadro internacional configura um poder amigo e próximo, que se exprime em Português, com uma mútua interpenetração humana que marca o quotidiano das nossas relações, que cria um espaço de automática familiaridade com permanentes consequências no desenvolvimento das mesmas.
Temos valores de afirmação externa comuns, temos interesses coincidentes em muitos domínios e, o que é mais importante, nenhuma das dinâmicas de afirmação externa do Brasil no mundo é minimamente conflitual com qualquer vector estratégico em que assentamos a nossa política externa. Este quadro favorável é, além do mais, potenciado por uma relação de intimidade que é única e atípica.
Alguns dirão que não se deve assentar uma dimensão de política externa apenas na afectividade. E têm razão: é por isso que, em 1999 e 2000, demos substância e suporte políticos ao movimento de capitais que se associou à recuperação da economia brasileira; e, por essa mesma razão, foi fixado em 2003 um acordo – que é único no nosso quadro de relações externas, mesmo com países de língua portuguesa – para a regularização de todos os brasileiros que aqui chegaram até há dois anos.
É porque a relação entre nós tem um carácter diferente que as coisas se passam de maneira diferente do que sucede com outros países, mesmo com aqueles com os quais temos entendimentos formalmente mais privilegiados. Alguns não percebem isto e ambos percebemos que eles não percebam.